terça-feira, 30 de abril de 2013

Quando as ruas não tinham nome

 Era uma vez uma praceta, que agora se chama praceta de Ipanema, onde há muitos, muitos anos viviam duas macacas, uma mais pequena e outra maior, onde eu costumava brincar quando era criança. Também era nessa praceta onde costumava andar horas a fio de bicicleta, ou quando era mais pequenina de carrinho de pedais.
 Nessa praceta viviam os meus avós. Onde eu vivia, na altura, o lote 86 e por isso chamávamos a rua dos 80, todos os prédios tinham dois pátios, um dos quais fechado que ficava na parte de trás. Nos 80 com cerca de 8 anos todos éramos amigos e brincávamos às escondidas e à apanhada mesmo à noite depois do jantar, numa altura em que brincar na rua não era sinónimo de perigo. Quando entrei na adolescência comecei a brincar com os amigos das ruas vizinhas, os 70 e os 90. No Carnaval fazíamos guerras de balões de água entre ruas, guerras onde ninguém era vencedor e ninguém era vencido pois apenas queríamos aventura e diversão.
  Na rua dos 90 tínhamos um grito de guerra, quando acabávamos de jantar íamos à janela gritar para avisar que estava na hora da brincadeira e todos saíam à rua, brincávamos à apanhada, levávamos rádios de pilhas onde ouvíamos música e dançávamos. Na altura não havia facebook ou qualquer outra rede social, quase ninguém tinha ainda computador, portanto as conquistas eram feitas a jogar ao bate-pé ou a dançar “slows” (músicas românticas, baladas) na rua sob o céu estrelado ou em casa de alguém. Também escrevíamos cartas de amor uns aos outros, e em vez de um blogue, todos tínhamos um diário com um cadeado onde relatávamos os acontecimentos mais marcantes.
Em casa, nos dias de chuva, desde pequena que o meu pai me incutiu o gosto pela cultura, imaginem só que com 5 anos o meu jogo favorito era o das capitais, o meu pai perguntava-me qual era a capital de um país e eu respondia, outro jogo que fazíamos era o memories, utilizando os cartões do trivial pursuit o meu pai fazia-me perguntas e eu em tempo record tinha que responder a todas, um excelente modo de treinar a memória. Sou filha única no entanto nunca me senti só, ou estava na rua com os amigos ou estava nas festas com os meus primos, a brincar às escolas ou mesmo a fazer campeonatos de ginástica rítmica com arcos, bolas e massas. As minhas primas mais velhas ensinavam-nos inglês e alemão e fazíamos passagem de modelos com as roupas e maquilhagem das mães, enquanto os pais dançavam, comiam e bebiam na sala.
Quando era pequenina o meu avô contava-me histórias de animais, ele tinha um gosto especial pela vida selvagem, hoje sou uma professora de filosofia que trabalha como coordenadora pedagógica no Jardim Zoológico, vejo a minha profissão como uma soma de todos os jogos que fazia com o meu pai e das histórias que o meu avô me contava.
  Num tempo em que não havia playstation passava horas a construir cidades de bonecas em casa das minhas amigas, como não havia karaokes na Internet ou na MEObox, púnhamos o gira-discos a tocar e cantávamos por cima das músicas. Também compúnhamos músicas infantis com coreografias e cobrávamos bilhetes para o espectáculo nos recreios da escola.
 Num tempo em que não existia farmville o contacto com os animais era real quando íamos para o campo ou mesmo na cidade quando levávamos para casa caixas de sapatos com bichinhos da seda para vê-los transformarem-se em borboletas. Também cultivávamos na janela do quarto ou na marquise da cozinha copos com feijões para vê-los crescer.

Esperávamos ansiosamente pelos arraiais populares em Junho, onde comíamos sardinhas e nos encontrávamos ao som da música, à noite, no adro da igreja.
Quando as ruas não tinham nome e as crianças brincavam na rua até anoitecer, éramos mais solidários, criávamos mais defesas, respirávamos mais ar puro, éramos também mais saudáveis, de corpo e de espírito.
O bairro onde cresci é a freguesia da Portela, no concelho de Loures, e a rua dos 80, hoje chama-se Rua Pedro Álvares Cabral. Agora todas as ruas já têm nome e já ninguém se conhece, nem se cumprimenta na rua. Hoje as crianças da Portela e de tantos bairros de Portugal passam as férias fechadas em casa a jogar playstation ou a falar na Internet. Hoje as ruas já têm nome mas ninguém, sequer sabe, qual o nome delas…

3 comentários:

  1. Pois...sou desse tempo mas não da Portela, estudei lá e chegando ao Carnaval ir para a Gaspar Correia era tentar escapar dos balões, ovos e afins...mas eram tempos giros e o bairro não é o que era, nem com a própria escola me identifico. Espero que os nossos filhos saibam conviver com os amigos e com a natureza. Filha única? Nem sinais disso. Sou testemunha;)

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  2. Inspirador e verdadeiro! Era o que gostava que o meu filho tivesse, a nossa infância e adolescência!

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  3. e eu...nesse tempo esperava o autocarro em cima de uma árvore! e o arraial ainda era ao pé do seminário!!! grandes aventuras :)

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